quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Venda do ascendente ao descendente. A revogação da Súmula 494 do STF


Anna Maria Villela colocou em sua tese na Faculdade de Direito de Paris, em 1971, preciosa observação sobre a transmissão da herança no Direito brasileiro, a partir do art. 1572 do Código Civil, na adoção do princípio da saisine, isto é, le mort saisit le vif, em vernáculo, o morto é substituído pelo vivo. Logo, com a morte, abre-se a sucessão, e os herdeiros passam à disputa do cabível a cada um, ou a somente um, o acervo hereditário.
Tal exame é importante no discurso sobre o instituto da venda do ascendente ao descendente sem o consentimento dos demais descendentes. O tema ficou controvertido na doutrina, sobre as conseqüências, o prazo para a discussão, e a jurisprudência, e tomamos a maior, a do STF, já admitiu duas soluções, uma na Súmula 152, e atualmente na Súmula 494, e agora o novo Código
Civil revoga a Súmula 494, repristinando a Súmula 152 (art. 496).
O debate trava-se entre a caracterização de negócio nulo (Súmula 494) ou negócio anulável (Súmula 152 e novo C.C.), e o prazo para sua demanda – vinte anos (Súmula 494) ou quatro anos (Súmula 152).
Invoca-se Anna Maria Villela porque o socorro a seu trabalho leva-nos à nulidade, mas o início do prazo não é condizente na solução.
É necessária a digressão sobre o negócio jurídico realizado entre ascendente e descendente, para acentuar requisitos para a sua validade, entre eles a solenidade essencial para sua validade ( C.C. – 2002 – art. 166, V), bem como não pode haver o vício da simulação. No Código Civil (1916), o vício de simulação é anulável. No particular, o novo Código Civil considera nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistente se válido na substância e na forma (art. 167) e para caracterizá-lo quando houver aparência de transmissão de direitos a pessoas diversas daquelas às quais realmente se transmitem (art. 167, § 1º, I).
No tema central, três correntes estabelecem soluções para a falta de consentimento dos demais descendentes na venda do ascendente ao descendente.
A ancianidade do tema, ainda agora, com soluções controvertidas, está na linguagem das Ordenações Filipinas, que, para a falta de consentimento de filhos e netos, diz – “e fazendo tal venda, ou troca, sem consentimento dos filhos, ou sem nossa expressa licença, será nenhuma e de nenhum efeito”. (Portugal, 1985, título 12). Portanto, quis essa legislação considerar sem efeito e, assim foi lido como nula a venda.
O assunto veio ao art. 1132 do Código Civil (1916): “os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam”.
Impede-se, nessa circunstância, a existência de doação inoficiosa do ascendente transferindo (gratuitamente) ao descendente, em lesão às legítimas, como autêntico adiantamento.
Cabe, ainda, a observação com a localização do citado dispositivo no capítulo das obrigações, e não das sucessões, e, portanto, a disputa é de negócio jurídico, e não de transmissão de bens, via sucessória.
O novo Código Civil expressa: “é anulável a venda de ascendente e descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante, expressamente, houverem consentido” (art. 496).
A doutrina dividiu-se nas conseqüências. Para Clóvis Beviláqua o negócio é nulo, porque a lei nega-lhe efeito (sem consentimento). Na mesma linha, Pontes de Miranda e Eduardo Espínola.
Mais recentemente, autores de expressão entenderam o negócio como anulável, porque não há interesse público, e assim, somente com provocação dos interessados, é possível a decretação da invalidade. Se o pai vende ao filho, sem consentimento dos outros filhos, esse negócio subsistirá se os outros não argüirem, e até poderão ratificá-lo. Assim estão Washington de Barros Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira e Agostinho Alvim.
Assinale, também, na terceira corrente, a distinção entre venda direta (nula) e venda indireta, por interposta pessoa, simulação (anulável).
A jurisprudência do STF, em 1963, pacificou-se na Súmula 152, considerando a venda anulável, contado o prazo de quatro anos a partir da abertura da sucessão. Entendeu-se, portanto, que a venda era simulação (ou não, se realmente o pai vendesse ao filho, mediante prova do pagamento do preço), mas a invalidade somente poderia ocorrer após a morte do ascendente, no prazo de quatro anos, por ser vício da vontade. A actio nata, com a abertura da sucessão, significou solução expressiva, porque, a partir desse momento, haveria a transferência da propriedade (cf. VILLELA, 1971), e também a partir da abertura da sucessão, presumese a ciência da transferência da propriedade, e até a sua existência.
Posteriormente, o STF revogou a Súmula152, com a edição da Súmula 494, caracterizado o negócio como nulo, com prescrição em vinte anos, e actio nata da data de negócio (ROSAS, 2002, p. 224). Aqui, permite-se até em vida do ascendente, porque a disputa é em razão do negócio, e não da herança.
Estranhamente, esse debate só existe nosdireitos brasileiro e português. O Código Civil Português considera anulável, após um ano do conhecimento da celebração do contrato (art. 877).
A jurisprudência do STJ, em média, adotou as duas Súmulas 494 (venda direta) e 152 (venda indireta).
Adotou-se a nulidade para ato de transferência de quotas sociais empresariais do pai ao filho, com prescrição vintenária, com a actio nata do ato de transferência. Portanto, aplicação da Súmula 494 (Resp. 208 521 – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – RT 778/230; no Resp. 151 935 foi feita excelente distinção entre venda direta e indireta – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – RT 763/179).
Em outras oportunidades, a Corte deu pela anulação, com interposta pessoa, com prazo de quatro anos, a contar da abertura da sucessão (Resp. 86 489 – Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – RT Rev. STJ 90/275). Da mesma forma, em outro julgado, em que foi acentuada a anulação, porque a declaração de invalidade depende da iniciativa dos interessados, viável a confirmação, e valerá se provado o justo e real preço (Resp. 977-0– Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – RT 717/259). Ainda em expressivo acórdão sobre o tema, a Corte deu pela anulação, mas dependente da demonstração da simulação. Se o preço não foi inferior, logo a venda foi boa (Resp. 74 135 – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, RT 789/180).
Essa discussão não se aplica à doação do ascendente ao descendente, porque o texto legal trata de venda. Nesse caso, trata-se de adiantamento da legítima (Resp. 124220 – Rel. Min. César Asfor Rocha – RT 754/239 e Rev. STJ 107/281).
Em outra decisão, não foi exigida a prova da simulação, apenas a venda sem consentimento pressupõe a anulação (Resp. 84724 –Rel. Min. Waldemar Zveiter – RT 741/223).
Como observou Oliver Holmes, o direito não é só lógica, também experiência. Vejamos então, como ocorre na prática.
O pai vende ao filho pelo preço certo, pago, comprovado, até nas declarações de renda. Não há qualquer vício. Afinal, o pai pode vender ao filho, sem induzimento de doação inoficiosa, ou adiantamento da legítima disfarçada em prejuízo dos outros filhos.
O pai vende ao filho, com pagamento simulado, não ocorrido na realidade. Só pode se adiantamento da legítima. Logo, venda direta, em autêntica fraude à legítima. Caso, portanto, de nulidade.
O pai, por interposta pessoa, vende ao filho, com pagamento simulado. Logo, há simulação com vício de vontade.
Juntando o art. 496 do CC – 2002, a Súmula 152 (anulável – quatro anos) e a Súmula 494 (nula – vinte anos), vamos à experiência do Direito.
Na verdade, a solução está na anulabilidade, porque depende de aprovação dos interessados, que não consentiram, e pode ser confirmada pelas partes (CC – 2002 – art. 172), e a invalidade deve ser pedida no prazo de quatro anos (CC – 2002 – art. 178), contado da abertura da sucessão. Por quê? E não do ato? Ora, nesse tipo de negócio, o seu esclarecimento, a sua exteriorização só é reclamada quando há a morte do ascendente vendedor, diante do inventário, da busca dos bens a inventariar. Somente a partir daí ocorre a legitimidade para a demanda, ao contrário da prescrição vintenária que permite a demanda, em vida, contra o ascendente vendedor. Essas observações são levadas em conta, com a experiência desse singular negócio da venda do ascendente sem o consentimento dos demais descendentes. Na linha da simulação, verificase qual o verdadeiro negócio concluído pelas partes e se verdadeiramente foi concluído. Para essa divagação, é necessário o exame da linha do Código de 1916 que enquadrou a simulação entre os vícios de vontade, e o novo adotou outro sistema, numa lição atual de Tullio Ascarelli (2001, p. 75) para o tema. Portanto, somente com a transmissão da herança, por força do droit de saisine, ocorrerá o direito à demanda, tudo isso deduzido da tese de Anna Maria Villela, acima citada.

Roberto Rosas

Bibliografia

ASCARELLI, T. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. Campinas: Bookseller, 2001. PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985. v. 4.

ROSAS, R. Direito sumular: comentários ás súmulas do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 11. ed. rev. e atual. com referências ao Código Civil de 2002. São Paulo: Malheiros, 2002.

VILLELA, A. M. La transmisión d’herédité: en droit brésilien et en droit français. 1971. Paris: Lib. Techiniques, 1971. Publicado originalmente como tese de doutorado, Université de Paris, 1970.

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